A Lei Federal 9.830/00 incluiu o artigo 337-A no Código Penal, o qual traz como cerne a restrição da prática delituosa de Sonegação de Contribuição Previdenciária a três condutas típicas, ao rezar, ipsis literis:
“Artigo 337-A – Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I – omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviços:
II – deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços;
III – omitir, total e parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias.”
Como é de todos sabido, até o evento da reforma do Código Penal havida em 1984, prevalecia no âmbito criminal a Teoria Classica ou Causalista da Ação (formulada por Franz von Liszt e Ernst von Beling), sobre a qual não nos aprofundaremos, mesmo tendo influenciado grandes nomes do Direito Penal Brasileiro, como Basileu Garcia, Magalhães Noronha, entre muitos outros, durante o Século XX, vez que não mais ajustável à hodierna esfera penal de nosso pais.
Em 21 de outubro de 1969 teve curso uma frustrada tentativa de substituição do Código Penal de 1940, através da promulgação do Decreto-Lei 1.004, o qual, embora modificado substancialmente pela Lei 6.016, de 31 de dezembro de 1973, não sobreviveu às pesadas críticas que lhe foram dirigidas desde o seu nascedouro e a elas culminou por sucumbir em 1978, ao ser revogado pela Lei 6.578, de 11 de outubro daquele mesmo ano.
Persistia a predominante intenção de se promover uma ampla revisão do sistema penal, a qual acabou resultando, em 27 de novembro de 1980, na instituição de uma comissão de juristas presidida por Francisco de Assis Toledo e que teve a ilustrá-la Miguel Reale Júnior, Renê Ariel Dotti, Rogério Láuria Tucci, entre outros, com a missão de elaborar um anteprojeto de lei para a reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro. E tudo culminou com a edição da Lei 7.209, de 11 de julho de 1984, que introduziu as pretendidas alterações da Parte Geral.
Para a maioria dos autores contemporâneos, o que é reconhecido na doutrina e jurisprudência, a Teoria Finalista da Ação, que teve como criador o alemão Hans Welzel, foi adotada pelo Código Penal. Segundo ela, a infração penal só se constitui mediante a prática de conduta tipificada, antijurídica e culpável. Destaca-se aqui assumir a culpabilidade pressuposto fundamental para a configuração do crime. Na Teoria Finalista é de se considerar em princípio o que o agente pensou ao praticar a conduta, o que guardava em sua consciência, se tinha ou não intenção de realizar a conduta reprovável. Tal conduta pode ser ativa ou omissiva e a ela deve, irrefragavelmente, somar-se o dolo atribuível ao autor do crime, ou a culpa stricto sensu em que possa ter ele incorrido por haver-se omitido em relação a uma obrigação objetiva de cuidado.
O art. 18, do Código Penal, revela:
“Art. 18 – Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Em face da importância que incorporará ao prosseguimento de nossas digressões acerca do elemento subjetivo do tipo, no que toca ao artigo 337-A, do mesmo código, impende repetir com destaque o que dispõe, claramente, o parágrafo único, do artigo 18: Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
No enunciado do artigo 337-A, do Código Penal, fica evidenciado que a prática delituosa é descrita pelos verbos suprimir ou reduzir, ambos de essência irretorquivelmente comissiva, embora as ações que identificam os fatos típicos ali previstos estejam consubstanciadas por dois verbos que, em regra, estão vinculados a atos omissivos: omitir, incisos I e III, e deixar (de fazer algo), inciso II.
Tomemos, inicialmente, o inciso I, que descreve a conduta caracterizada pela omissão intencional de “segurados trabalhador autônomo…”, como conduta típica do crime de Sonegação de Contribuição Previdenciária.
Seria preciso, então, que o agente perpetrasse dolosamente o ato de “suprimir ou reduzir”, ambos os verbos de natureza comissiva, mediante a omissão de quaisquer dados, ajustados aos antes descritos, de “folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária” (tipicidade e antijuridicidade), suprimindo-os ou reduzindo-os.
O mesmo se dá em relação às ações retratadas no inciso III, do mesmo artigo, em que se relatam prognoses de fatos, cuja ocorrência intencional tipificaria a infração especificada no caput do artigo.
Tal ocorre, igualmente, no que respeita ao inciso II. Não obstante o verbo utilizado seja “deixar”, não há equívoco em se afirmar, quando nos remetemos ao caput do artigo, que se trata, igualmente, de crime comissivo, consubstanciado nos verbos “suprimir ou reduzir”, vez que importa em assumir, adotar, praticar a ação de não fazer, intencionalmente, lançamentos obrigatórios e próprios da contabilidade, os quais trariam ou poderiam gerar responsabilidades previdenciárias, que, com sua omissão, o agente buscaria evitar.
Claramente, não se trata, na espécie, de crime omissivo próprio, como resta claro quando nos remetemos ao crime de omissão de socorro, este, efetivamente, decorrente de uma atitude omissiva. Cuida-se, aqui, na verdade, de crime comissivo, em que se exige do autor a ação deliberada de “omitir ou deixar de fazer”. Exagerando-se, nada obstante deva ser considerado uma heresia jurídica, outros possam entender, no máximo, por força dos verbos utilizados, cuidar-se de crime comissivo por omissão.
De todo modo, qualquer que seja o entendimento, nenhuma dúvida resiste ao fato de que, em termos de culpabilidade, o elemento subjetivo a ser considerado seja, exclusivamente, o dolo que se materializa na livre vontade de suprimir ou reduzir informações, modificando-as em desfavor da arrecadação previdenciária.
Vê-se, portanto, que em qualquer dos acontecimentos pressupostos no art. 337-A, do Código Penal, e seus incisos, o elemento subjetivo é o dolo, não havendo hipótese de se falar ou, sequer, pensar, em crime culposo. É crime material que se consuma, exaurindo-se, com a real e concreta supressão ou redução intencional (suprimir ou reduzir) da contribuição previdenciária. As condutas omissivas descritas nos incisos cingem-se ao âmbito dos meios de execução. E são consideradas, à luz da doutrina e da jurisprudência, atos fraudulentos, cuja prática, para configurar crime, só pode ocorrer, repete-se, dolosamente.
O conceito de fraude está sempre associado ao de burla, que é uma prática enganosa. Consiste, basicamente, em agir-se de modo dissimulado, falso, para se lograr algum benefício moral ou material. E só pode ser proposital.
Cabe aqui um comentário sobre a hipótese, até certo ponto, muito plausível de supressão ou redução culposa dos dados relativos às contribuições previdenciárias como apontados no artigo em tela e seus incisos, o que, reconheça-se não é difícil de ocorrer frente ao emaranhado, cada vez mais absurdo de leis, normas infra-legais, instruções normativas, portarias, entre outros, de par a sistemas oficiais de inserção de informações, como é exemplo clássico e indiscutível o chamado SEFIP, mal construídos e obsoletos, os quais geram constantes dúvidas e muitas iniquidades em desfavor aos contribuintes.
Assim, não há e não pode haver, em face da lei, qualquer que seja a hipótese, forma de punir-se criminalmente alguém por inserção equivocada ou indevida, mas não intencional, das informações indicadas no artigo em tela ou mesmo nas demais leis previdenciárias que tratam de assuntos correlatos, posto nenhuma delas mencionar, nem de longe, a forma culposa do delito, que só ocorrerá e poderá ser punível se comprovada a forma DOLOSA. É defesa, igualmente, a própria autuação do contribuinte pelo Fisco, com aplicação de sanção punitiva administrativa (multa, por exemplo), como efeito claro e inconteste da própria lei, a não ser que PROVADA a existência de DOLO na ação do mesmo.
Como corolário do que afirmamos e decorrência explicita da própria lei, caberá sempre aos agentes públicos tão só a verificação de que o documento tenha sido preenchido de forma equivocada, seja por mera inexperiência de quem o tenha elaborado ou pela sua própria ignorância do intrincado e, às vezes, ininteligível, por suas constantes alterações, regime normalizador vigorante.
A partir da constatação da irregularidade administrativa a ser formalizada por meio de uma autuação pelo agente fiscalizador, terá início o cabível procedimento administrativo, que na esfera fiscal já admite o contraditório, ou seja, sendo-lhe apontada uma possível infração, cumprirá ao contribuinte, se quiser e dentro do prazo legal, insurgir-se quanto à procedência da mesma, podendo, inclusive produzir e requerer provas.
Uma vez que a própria lei só admite a modalidade dolosa do crime em tela, terá o agente que efetuar a autuação a obrigação inalienável de COMPROVAR, efetiva e definitivamente, que o autor do possível crime de sonegação de contribuição previdenciária tenha agido de modo DOLOSO, ou seja, com o intuito específico de fraudar as informações, as quais esteja obrigado a prestar ao poder constituído. Não há circunstância ou caso em que se possa mencionar ou presumir sonegação culposa, a qual ficaria restrita, aprisionada no círculo de erro ou equívoco formal, sem nenhuma repercussão no cenário penal, posto não ser admitido, na espécie delituosa, como elemento subjetivo, a culpa stricto senso. Na espécie, ex vi legis, NÃO EXISTE CRIME CULPOSO.
Se nos remetermos à leitura do Art. 18, do Código Penal, temos que:
“Art. 18. Diz-se o crime:
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
…”
Ai estão contemplados o dolo direto e o dolo indireto. No dolo direto ocorre a efetiva e concreta vontade do agente na prática do ato antijurídico e obtenção do resultado dele decorrente. No dolo indireto a intenção do sujeito não se dirige a determinado e certo resultado, não obstante o mesmo possa e deva ser previsto.
Para exemplificar, tomando-se o crime de homicídio (art. 121, do CP), ocorre o dolo direto quando o agente desfere vários tiros em seu opositor com a intenção de matá-lo. Há a projeção da vontade do autor dos disparos diretamente ao resultado morte. Ele “quis o resultado”.
De outra parte, o dolo eventual se dá quando o sujeito, embora não o querendo, pode prever o resultado, mas, indiferente a ele, assumiu o risco de produzi-lo. É o caso do motorista de automóvel que trafega em alta velocidade em via muito movimentada e culmina por causar acidente que traz como resultado a morte de alguém. No caso, era fácil e plenamente previsível o acontecimento, cujo resultado ele, por meio de sua atitude, demonstrou ter admitido e aceitado. Portanto, “assumiu o risco de produzi-lo”.
Aqui se reforça a certeza de que o crime previsto no Art. 337-A, do Código Penal, por tratar, em última análise, de fraude de documentos – “Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório” – pressupondo, desse modo, atitude ardilosa, exige, inelutável e irretorquivelmente, o dolo direto como único elemento subjetivo do tipo. Há que haver a demonstração cabal do cometimento doloso do ilícito penal.
Ainda, se regressarmos ao Capítulo VI – Do Estelionato e Outras Fraudes, a leitura do Art. 171, vai nos mostrar que em seu enunciado podemos encontrar, mutatis mutandis, os mesmos elementos de criminalidade contidos no Art. 377-A, assim caracterizados pela obtenção de vantagem ilícita mediante a manutenção de outrem (no caso do crime contra a Administração Pública, o Fisco) em erro, por modo “de artifício, ardil ou outro meio fraudulento”. E não há qualquer questionamento acerca do imprescindível elemento subjetivo do tipo, qual seja o dolo.
Mal comparando, mesmo em um procedimento administrativo com muito mais acentuada discricionariedade, como o é o Inquérito Policial, onde nem mesmo vigora o princípio do contraditório, a “notitia criminis”, ou a “delatio Criminis”, trazida ao conhecimento da Autoridade Policial jamais deverá eximi-la de instaurar o inquérito policial cabível, buscando para ele carrear um conjunto de evidências entre provas e indícios, com o objetivo de convalidar a notícia trazida ao seu conhecimento, para, só depois e ao cabo da investigação, concluir o feito procedimental, com eventual indiciamento do autor e sequente relatório dirigido ao Ministério Público.
Assim, cumpre à administração fiscal proceder de forma semelhante, colhendo material, dados, subsídios concretos de convicção acerca do elemento subjetivo, qual seja o DOLO, sem cuja comprovação é vedado, é proibido tipificar-se o fato previsto no artigo 337-A, do Código Penal, como crime, ainda que o contribuinte tenha praticado os atos ali previstos culposamente.
Dessume-se do quanto já exposto que cumpre ao poder público a inafastável obrigação de provar a existência do elemento subjetivo dolo, na conduta do agente, “conditio sine qua non” para que fique materializado o crime de sonegação de contribuição previdenciária. Caso contrário, poderá restar somente mera incorreção administrativa que, neste âmbito, deve ser tratada.
Joffre Sandin